Pedro era político conhecido em Pernambuco e deixou o cargo de Secretário de Justiça e Direitos Humanos do Estado após as denúncias virem à tona. Procurado pela reportagem, não quis dar entrevista.
Maria da Penha provavelmente ressaltou a coragem de Maria Eduarda porque entende que ela é exceção. Embora a violência doméstica não distingue classe social, raça, etnia, religião, orientação sexual, idade e grau de escolaridade, é raro uma mulher de classe alta denunciar e se expor publicamente. O espanto de alguns em torno do episódio recente envolvendo a apresentadora Ana Hickmann mostra isso. É como se não coubesse a uma mulher rica o papel de vítima.
A história de Maria Eduarda e Pedro Eurico começou como a maioria das futuras relações abusivas e violentas, com romantismo e paixão. Separada, com dois filhos pequenos e criada com a ideia de que uma mulher tinha que ter um marido para chamar de seu, ela cedeu aos galanteios de Pedro Eurico, seu ex-vizinho, e decidiu dar mais uma chance para o amor. “Eu pensava em fazer de tudo pra dar certo e desconsiderava os sinais que hoje vejo tão claramente”, diz ela.
Maria Eduarda foi criada em Olinda, no berço de uma família católica de classe média alta, frequentou escola de padre, casou aos 19 anos, mudou-se para Recife, se formou em economia, teve dois filhos do primeiro casamento e casou-se pela segunda vez com Pedro, com quem ficou por 25 anos.
Frequentava colunas sociais e eventos da sociedade pernambucana. “Depois que me expus, comecei a perceber essa coisa velada na classe média alta. Já aconteceu de, em evento social, alguma mulher confessar alguma coisa, ou porque tinha bebido ou porque estava no limite. Eu me sentia tão mal. Pensava: estamos todas aqui mentindo. Era tão ruim sentir essa ligação com elas nesse mundo silencioso. Aí depois era sempre, ‘ai amiga desculpa, falei mas não era pra falar, se meu marido descobre…”
Para Maria Eduarda, a maior razão desse silêncio é a vergonha. Depois vem o medo. E em muitos casos, claro, a zona de conforto. “Você vive com uma pessoa que paga tudo, que te leva pra tudo que é lugar, a gente vê um mundo tão difícil e pensa: como é que vou pagar minhas contas? No meu caso, que sempre trabalhei, o que pesava mais eram os julgamentos, ‘ah então porque está esse tempo todo? No primeiro tapa eu saía’. Jura? Como você sabe se não tá lá dentro?’ E tem ainda o sentimento. Eu amava essa pessoa. A gente dançava muito. É sofrido quando alguma música me faz lembrar a parte boa. Eles têm um lado bom também.”
Maria Eduarda tem consciência dos seus privilégios e das estatísticas que apontam que as mulheres negras são as maiores vítimas de violência doméstica e de feminicídio no Brasil. Embora tenha recebido acolhimento de seu pai, dos filhos, e até de gente que não conhecia tanto, sente que existe, em geral, uma falta de empatia das pessoas com as mulheres vítimas de classe alta. E talvez essa seja mais uma razão, segundo ela, pela qual as mulheres ricas apareçam menos.
Depois de sete anos de terapia e dois da separação, diz que agora consegue entender, dar nome a tudo pelo que passou, e se sente preparada para contar sua história, com o propósito de ajudar outras mulheres a não se sentirem no escuro como por muitos anos ela se sentiu.
Ao lado de uma amiga que também foi vítima de violência doméstica, está elaborando um projeto que dialoga com mulheres de classe média e média alta, em parceria com o Instituto Maria da Penha de Recife e da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes (PE). O primeiro evento deve ocorrer em 2024.
De acordo com a promotora Silvia Chakian, integrante da Promotoria Especializada de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar do Ministério Público de São Paulo, um dos diversos mitos em torno da violência doméstica contra as mulheres está na crença de que apenas aquelas pertencentes a classes sociais menos favorecidas possam ser vítimas.
“O cotidiano do enfrentamento a essa violência mostra um quadro diferente e não é incomum que mulheres de classe média ou alta sofram violência física, emocional e patrimonial por parte de parceiros ou ex-parceiros, apesar de ainda haver muita subnotificação, por fatores como medo e vergonha, dentre outros. Se a mulher pobre, quando vítima de violência doméstica, encontra mais dificuldades de acesso a direitos básicos como moradia e autonomia financeira, a vítima com maiores condições pode vir a enfrentar obstáculos específicos relacionados à sua condição, por exemplo de ser pessoa pública, ou de pertencer a um círculo social que ainda culpabiliza mulheres pela violência, desacredita de sua palavra, minimiza episódios dessa natureza ou promove julgamentos morais”, explica.
Ainda há outro elemento agravante: maridos agressores com alto poder aquisitivo podem potencializar a violência, inclusive após a denúncia ser feita. “Com maior capacidade financeira ou poder de influência, por exemplo, podem ser intensificadas práticas de violência psicológica como perseguições, difamações inclusive no espaço público ou virtual, lawfare de gênero, alienação parental”, diz a promotora.
Eduarda conta que não demorou para Pedro se mostrar um homem extremamente possessivo e ciumento. Mas ela achava que aquilo era carinho, que era amor. Segundo a economista, quando o ex-marido a sugeriu que não trabalhasse em empresa para ficar mais livre e poder viajar com ele, pensava que era uma sortuda: “Ele vai me levar para todos os lugares do mundo. Tenho um marido disposto a me dar tudo isso e eu querendo ser uma simples funcionária de banco”.
Ainda segundo Maria Eduarda, o ex-marido sempre dava um jeito de diminuí-la. “Quando ele percebia que em algum lugar eu me destacava, chegava em casa e falava: você tava ridícula, fulano não te suporta. Sempre corri de briga, e quando ele fazia essas coisas eu não rebatia, ia pra dentro de um buraco.”
A economista relata que tudo evoluiu muito rápido e logo vieram as agressões físicas e nove B.Os que não deram em nada. Em 2008, ela foi embora para São Paulo, onde já tinha um emprego numa livraria, e pediu a separação. Conta que quando Pedro descobriu onde ela estava, pegou um avião e apareceu na livraria pedindo para voltar. Ela disse não.
Porém, pouco tempo depois, ela precisou retornar para Recife e cuidar da mãe, com dengue hemorrágica. Acabou reatando com Pedro e ficando de vez em Recife. “Aí vem aquele amor, aí manda flores. Diz que ama, que sou a mulher mais linda do mundo. Aí começa tudo de novo. O famoso ciclo da violência. Mas na época eu não sabia de nada disso. Mergulhei de cabeça e falei: agora vai dar certo. E fui me anulando para evitar o conflito. Eu já sabia que ele não gostava que eu saísse com minhas amigas, então eu não ia e não tinha briga. Só que isso foi me deixando triste, deprimida. Fiquei totalmente adoecida, com fibromialgia. Não queria mais conviver, era só dor, medo e pânico. Você vai morrendo. Foi quando eu percebi e procurei um psicólogo”, conta ela.
Incentivada pelo terapeuta, Maria Eduarda começou a ir sozinha para sua cidade natal, Olinda. Passava horas à beira mar, chorando. Entendeu que ali era seu lugar, era onde foi e poderia ser feliz. Resolveu também mudar de quarto, criar um espaço só seu.
“Pintei as paredes de rosa e comecei a fazer tudo o que queria. Coloquei umas plaquinhas de madeira tipo ‘Calma na Alma’. Fui levando Olinda ali pra mim. No quarto rosa, fui me fortalecendo e comecei a negar coisas: sexo, companhia, diálogos. Fui pedindo a ele pra me separar. E aí tudo piorou. Ele começou a ficar mais violento em todos os sentidos. Dizia que ia me matar e ia parecer um acidente, me violentava sexualmente. Não tinha menor ideia de que aquilo era um estupro, assim como desconhecia a violência patrimonial. Tirou meu cartão de crédito, de débito, eu tinha que pedir dinheiro a ele todos os dias. Só fui entender tudo quando procurei advogados. Foi então que consegui ter forças para denunciar e sair de casa. Eu pensei, morta eu já tô aqui dentro. Vou lá pra fora, se morrer lá fora, tudo bem, mas morrer aqui dentro não.”
Em 2021, Eduarda conseguiu sair de casa e voltar para Olinda, acompanhada por seguranças. A princípio, foi morar com a mãe. Depois arrumou um canto só para ela: “Eu saí do quarto rosa, saí do imaginário e fui pra Olinda real. Meu sonho se tornou realidade: ficar viva em Olinda. É a primeira vez na vida que moro sozinha. É muito bom, tenho tempo pra mim, faço o que quiser da minha vida, eu nunca imaginei que isso pudesse existir”.
Ela diz que Pedro não aceitou isso fácil e quebrou por três vezes a medida protetiva naquele ano. Ao ser avisada de que ele estava no seu prédio, teria chamado a polícia.
“Adoro minha companhia, meus livros, minha casa. Adoro sentar na minha varanda, na minha rede, e ficar olhando pro mar. É o melhor momento da minha vida. Tô me sentindo em mim, nunca estive em mim mesma como estou hoje. Por que não se ensina sobre independência emocional, porque as pessoas não conversam sobre isso? A gente já devia vir da base com isso”, questiona.
Por Sara Stopazzolli*
*Jornalista da Marie Claire