Aquisição de terras por estrangeiros entra na mira da Justiça
Foto: Marina Barbosa/CB/D.A.Press
Após o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar a liminar que suspendia todos os processos na Justiça que tratem da compra de imóveis rurais por empresas brasileiras com participação majoritária de estrangeiros, especialistas voltaram a debater sobre o impacto da liberação das vendas sem fiscalização adequada. Atualmente, segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), grupos do exterior controlam ou detêm participação em 172 milhões de hectares de terras no Brasil.
O cálculo leva em conta áreas registradas integralmente em nome de estrangeiros e também imóveis rurais cujos detentores/arrendatários são de outro país — e podem controlar os investimentos no Brasil. Estudiosos do tema alertam para a importância da autonomia nacional, defesa do território e proteção ao meio ambiente — já que boa parte dessas investidoras são do ramo do agronegócio.
A compra de terras por estrangeiros não é proibida, mas a legislação impõe algumas condições e ritos específicos para a aquisição. Segundo a Constituição, a pessoa jurídica estrangeira que tem autorização para operar no Brasil ou a empresa, com sócio majoritário de outro país, precisará de autorização do governo para compra de terras. Em alguns casos, inclusive, com pedido de aprovação do próprio presidente da República.
A aquisição é regulada pela Lei nº 5.709/71, que impede a compra ou o arrendamento de terras com mais que 50 módulos fiscais por estrangeiros. Segundo a norma, o limite, por município, equivale a 25% de seu território sob controle de cidadãos ou empresas de outras nacionalidades. Uma mesma nacionalidade estrangeira também não poderá deter mais do que 10% da área de um determinado município.
A alta demanda levou a Advocacia-Geral da União (AGU), em 2010, a reinterpretar a legislação até então vigente, no intuito de limitar o acesso de estrangeiros à propriedade fundiária nacional. Para o órgão, deve valer o princípio da soberania aplicado à ordem econômica e o artigo 171 da Constituição — que permite ao Estado disciplinar e regulamentar o investimento de capital estrangeiro de investidores que não vivem no Brasil e de empresas sediadas fora do país.
O Ministério Público Federal (MPF) partilha do mesmo entendimento. O órgão aponta que alterar lei contraria diversos dispositivos constitucionais e vai na contramão do princípio da soberania nacional. As instituições entendem que a terra é estratégica do ponto de vista territorial, de organização agrária e de reserva alimentar, e que as regras existentes estão alinhadas à Constituição.
"Em primeiro lugar, tem uma questão de soberania: alimentar e econômica. São múltiplos interesses. Precisa menor desigualdade, regulação fundiária, possibilitar participação de pequenos agricultores. Se você abre de forma livre, pode ter um aumento da concentração de renda, porque os produtores não poderão ter acesso (às terras)", ressaltou o procurador Michel Havrenne.
Riscos
Supostas dúvidas sobre o alcance da legislação estavam servindo de pretexto para o avanço de outros países na Região Amazônica, em São Paulo e no Mato Grosso, por exemplo. O caso chegou ao Supremo e, em abril, o ministro André Mendonça confirmou a constitucionalidade da Lei nº 5.709/71, que estabelece regras específicas para a compra de terras no Brasil por estrangeiros.
A decisão, porém, foi derrubada, em maio, pelo STF, pois, em caso de empate, deve valer o posicionamento contrário à matéria, de acordo com as regras internas do tribunal. Assim, voltam a tramitar todos os processos suspensos pela liminar de Mendonça que versem sobre a validade da aquisição de imóveis rurais por empresas brasileiras com a maior parte do capital social pertencente a estrangeiros residentes no exterior ou pessoas jurídicas com sede fora do Brasil.
Para o advogado Rafael Zanini França, o tema necessita de um debate mais profundo. "É extremamente relevante e sensível aos cenários de investimento para desenvolvimento ainda maior do setor rural, mas o momento parece inoportuno, seja pela composição atual do Supremo, seja pelo fato da necessidade de uma decisão que uniformize a questão, sob pena de prejudicar ou beneficiar um caso específico, por conta de uma linha de entendimento pontual de um tribunal local", disse.
O advogado constitucionalista Max Kolbe acredita que deixar a questão sem uniformização é um risco para o país. "Pode causar sérias distorções quanto à lisura e à impessoalidade das transações, com fortes reflexos na atividade, não apenas de segurança territorial do país, mas do próprio agronegócio e de empresas brasileiras. Um problema seríssimo a ser solucionado que não deveria ter sido permitido a pessoas diversas solucionarem de forma diversa a mesma questão", destacou.
Moeda eleva a concorrência
Com o dólar valorizado, os grupos estrangeiros teriam larga vantagem sobre brasileiros. Com poucos recursos, eles podem comprar grandes propriedades e esperar até que os preços das terras, das commodities e dos créditos de carbono subam. Em abril, o diretor de Governança Fundiária do Incra Nacional, João Pedro da Costa, decidiu reabrir o processo que apontou irregularidades na compra considerada camuflada da fazenda Novo Macapá pela Agrocortex — empresa controlada pelo grupo espanhol Masaveu.
Um parecer da AGU, de outubro do ano passado, apontou que a companhia comprou 100% da Novo Macapá, uma propriedade de 190 mil hectares, entre o Amazonas e o Acre. Trata-se de um território maior que a cidade de São Paulo e, por isso, a compra foi considerada ilegal.
Na avaliação do economista Vinicius do Carmo, o setor agrário, como objeto principal, ou mesmo por suas atividades relacionadas, conta com alto nível de automação, e isso significa que a empregabilidade que gera é bem menor do que alegam as empresas estrangeiras. "Em termos econômicos, precisa ser melhor esclarecido o impacto na geração de empregos, pois a experiência nos mostra que a produção agrária não é trabalho intensivo", destacou.
"Assim, o investimento no setor não resulta em grande volume de empregos gerados como alegado; e, segundo, como colocado pelo jurista Miguel Reale, é da natureza da propriedade sua função social, então, esta sempre deverá ser empregada no ciclo produtivo, seja pelo grande empresário ou pelo agricultor familiar", disse. "Em resumo: não gera tanto emprego e se não for vendida ainda será utilizada produtivamente", completou Carmo.
Correio Braziliense
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