Cem anos de Zé Dantas, o 'Dotô' da música nordestina
Centenário do poeta e compositor de Carnaíba, parceiro de Luiz Gonzaga, é celebrado neste sábado (27); legado do artista pernambucano se mantém inestimável
Quiçá o mandacaru ‘fulorasse’ na seca o tanto quanto o “Xote das Meninas” segue reverberando em centenas de interpretações País afora, mais de seis décadas depois de sua criação pelo pernambucano de Carnaíba, no Pajeú, Zé Dantas. Se vivo estivesse (1921-1962), como poeta e compositor desta e de outras tantas canções, ele estaria triunfante.
Neste sábado, 27, na celebração do seu centenário de vida, a trilha sonora aflora para rememorar os ares da identidade nordestina desde sempre pensada por ele e vociferada, principalmente, por outro ‘caba da peste’ protagonista da cultura popular do Sertão, Luiz Gonzaga.
Com “Vem Morena”, na distante década de 1950, foi dado o pontapé para as bonitezas que viriam a seguir nesta parceria entre um futuro Rei do Baião – até então Luiz Gonzaga não ostentava o “título” – e o folclorista do Sertão do Pajeú, o doutor da Medicina e das manifestações culturais do Nordeste, Zé Dantas que, com a mesma afinidade do cearense Humberto Teixeira (1915-1979), dono da “Asa Branca” (1947) ao lado do Velho Lua, musicou do baião ao xote as dores e alegrias das vivências do sertanejo e saudou também suas próprias memórias no “Riacho do Navio” que corria pro Pajeú e ia despejar no São Francisco, “Pra ver o meu brejinho, fazer umas caçadas, ver as pegas de boi, andar nas vaquejadas, dormir ao som do chocalho e acordar com a passarada.
O cancioneiro de Zé Dantas e Luiz Gonzaga se funde, no encaixe perfeito que ganharia a partir da parceria entre ambos a popularidade que segue irretocável até os dias atuais, talvez a mais grandiosa da música brasileira. Ora compondo sozinho, ora dando letras para serem musicadas pelo companheiro de Exu, seja como letrista ou músico, sua canções passeavam em meio a lirismos e versos acintosos, no contraponto dos que eram direcionados às calamidades do homem do Sertão.
“Nos anos de 53 e 54 houve uma seca da ‘mulesta’ no Sertão nordestino, o Brasil ficou cheio de arapucas. Ajuda teu irmão! Uma esmola pro flagelado nordestino, qualquer coisa serve: dinheiro, roupa ‘véia’, sapato ‘véio’, camisa ‘véia’, tudo serve! Eu e Zé Dantas protestamos e gritamos bem alto: Seu Dotô os nordestinos têm muita gratidão, pelo auxílio dos sulistas nesta seca do Sertão. Mas Dotô, uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”, introduziu Seu Luiz, antes de cantar em um show a melancólica “Vozes da Seca” (1953).
Zé Dantas se foi cedo, aos 41 anos. Deixou viúva a companheira de vida Yolanda, falecida em 2017 aos 86 anos – cremada, teve as cinzas trazidas do Rio de Janeiro, onde morava, para o Cemitério de Santo Amaro, no Recife, onde está enterrado o poeta de Carnaíba.
Inspiração para o cancioneiro do marido, Dona Yolanda Dantas por vezes acompanhava ao piano as batidas em caixinhas de fósforo que o Doutor ritmava das letras escritas em papeis largados nos bolsos dos jalecos usados nos plantões como médico. “Vai, diz que o amor fumega no meu coração” – versos de “A Letra I” (1953), composta para ela - talvez tenha sido uma delas, não se sabe.
A Letra I
Vai cartinha fechada
Não deixa ninguém te abrir
Aquela casa caiada
Donde mora a letra I
Existe como uma cacimba
Do rio que o verão secou
Meus zóio chorou tanta mágoa
Que hoje sem água
Me responde a dor
Vai cartinha fechada
Não deixa ninguém te abrir
Aquela casa caiada
Donde mora a letra I
Existe como uma cacimba
Do rio que o verão secou
Meus zóio chorou tanta mágoa
Que hoje sem água
Me responde a dor
Vai diz que o amor
Fumega no meu coração
Tal qual a fogueira
Das noites de São João
Que eu sofro por viver sem ela
Tando longe dela
Só sei reclamar
Oi vivo como um passarinho
Que longe do ninho
Só pensa em voltar
Vai cartinha fechada
Não deixa ninguém te abrir
Aquela casa caiada
Donde mora a letra I
Existe como uma cacimba
Do rio que o verão secou
Meus zóio chorou tanta mágoa
Que hoje sem água
Me responde a dor
Vai cartinha fechada
Não deixa ninguém te abrir
Aquela casa caiada
Donde mora a letra I
Existe como uma cacimba
Do rio que o verão secou
Meus zóio chorou tanta mágoa
Que hoje sem água
Me responde a dor
Vai diz que o amor
Fumega no meu coração
Tal qual a fogueira
Das noites de São João
Que eu sofro por viver sem ela
Tando longe dela
Só sei reclamar
Oi vivo como um passarinho
Que longe do ninho
Só pensa em voltar
Seja com “A Volta da Asa Branca”, “Forró de Mané Vito”, “Sabiá” e “Cintura Fina”, entre outras tantas compartilhadas (ou não) com Gonzaga, Zé Dantas segue vivo, grandioso e incontestável. Em data centenária e dentro da dimensão que cabe à sua obra, ao aniversariante do dia resta a memória nostálgica das idas “Noites Brasileiras”, sob o embalo de um “Ai que saudades que eu sinto, das noites de São João, das noites tão brasileiras sob o luar do Sertão (...) Eita, saudoso Sertão, ai, ai”.
Por Germana Macambira
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