Importância de um Ministro Pessoa com Deficiência na bancada do Supremo Tribunal Federal
Os acontecimentos que decorrem das escolhas políticas para funções vitalícias da República, a exemplo dos cargos de ministro do Supremo Tribunal Federal, geram dúvidas, algumas razoáveis, outras nem tanto, mas que justificam, umas e outras, a exigência social pelo escrutínio dos candidatos a esses postos avançados do Poder Público no Brasil. Essa exigência compõe o espectro político de uma democracia participativa e é importante que esse exercício se torne uma prática costumeira nas sociedades politicamente esclarecidas.
O sistema constitucional brasileiro toma emprestado o norte-americano para delegar à Presidência da República a responsabilidade dessa escolha, efetivável após sabatina organizada e empreendida pelo Senado Federal. Depois de aprovado pela maioria absoluta dos Membros da Câmara Alta, o nome do(a) candidato(a) indicado(a) segue à nomeação por ato do(a) Presidente(a) da República, desaguando na posse de um novo Ministro do STF, de acordo com um protocolo bem conhecido.
A própria Constituição Federal, em termos abertos, estabelece os pressupostos para que um(a) brasileiro(a) nato(a) possa ser indicado(a) à composição da Suprema Corte: deve contar entre 35 e 65 anos de idade, ter notável saber jurídico e ser notabilizado por uma reputação ilibada. Compete à Presidência da República, mediante o adminículo do Senado Federal, portanto, a aferição desses predicados constitucionais sem cuja presença um nome não é elegível à Suprema Corte do país (artigo 101 e seu Parágrafo único).
Pode-se dizer, em primeiro lugar, que a resposta inicial para o supramencionado escrutínio social diz respeito ao atendimento fiel dos pressupostos da Constituição Federal. Cumpri-los, desse modo, importa em exame de dados biográficos, curriculares, pretéritos de vida social, política, profissional e intelectual, enfim. Aquele que se dispõe ao múnus público, sobretudo de carga suprema, não tem o direito de se negar ao conhecimento público, exatamente porque vai servi-lo e será pelo povo sustentado no encargo que lhe terá sido confiado em caráter vitalício.
É grande a responsabilidade dessa empresa. A uma, porque importa em um exercício de representação política com metodologia técnica para a qual o candidato deve, sim, estar muitíssimo bem preparado. Esse preparo, revelado nos títulos acumulados e na experiência, deve reunir na contemporaneidade aspectos multifacetados do conhecimento humano, à luz do notável saber jurídico que se lhe atribui, de sua ilibada reputação e da sensibilidade especial ao fenômeno jurídico para que se torne uma cidadela real de sustentação dos direitos individuais e coletivos preconizados no Ordenamento Jurídico da Nação. A duas, porque, mediante as próprias faculdades humanas, lhe é confiada a exponencial atribuição de dar corporeidade ao Estado-Jurisdição (no caso, em máxima instância no espaço interno), que é precisamente o papel a desempenhar no cotidiano da vida judiciária, o qual se densifica e se materializa constantemente na medida em que se mantenha fiel ao Direito posto, à Constituição e às Leis. Na Suprema Corte, suas decisões vão se integrar a um colegiado formado por 11 (onze) Ministros, mas nem por isso devem ser adotadas sem a consciência de tudo isso. O Supremo Tribunal Federal é a instância máxima do Poder Judiciário da República Federativa do Brasil. Assim sendo, trata-se de uma Instituição e não de uma corporação de ofício.
Desse modo, todo ativismo judicial deve ser entendido como excepcional e, sobretudo, obtemperado em face dos permissivos legais. Fora da Lei não há solução pacífica para nada nesta vida, ainda que nobres sejam os consideranda com os quais se empenhe o intérprete para fazer valer os seus valores, e não os valores constitucionalizados. Para uma reflexão generalista dos postulados primevos da sociedade a que o magistrado está a serviço, cumpre ter a sobranceira humildade científica de compreender que cabe ao poder constituinte - originário e derivado - e também ao Poder Legislativo proceder, consoante a dinâmica de seus funcionamentos político-jurídicos (clássicos). De fato, o juiz não é um legislador e a consciência técnica que o forja como operador do sistema jurídico é que se lhe aperfeiçoa a dignidade da própria função e o conserva, sobranceiro, na própria atividade jurisdicional como elemento integrante da engrenagem do Estado de Direito. Esse perfil confere ao magistrado plena legitimidade de ação, motivo pelo qual, dentro dessas balizas lógicas, priva de faculdades formidáveis para produzir decisões livres, calcadas na racionalidade do próprio sistema jurídico (independência funcional).
Adicionalmente, mas não menos importante, cumpre destacar uma singularidade que compõe a agenda política da Nação brasileira desde o advento da mencionada Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, sob os auspícios da ONU, assinada pelo Brasil em Nova Iorque e mais tarde internalizada com status de Emenda Constitucional, de acordo com a fórmula do art. 5º, § 3º, da Constituição Federal.
Sobre isto, parece claro que a deficiência, embora presente em ¼ da população brasileira (IBGE 2010), não marca critério algum aferidor de atributos, competências e habilidades, sobretudo para fins de inserção ou reabilitação em algum posto mais ou menos importante, social e politicamente falando, caso de uma até agora inédita investidura em cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Por que não?
A propósito, com ou sem deficiência, a pessoa dispõe de múltiplos talentos, virtudes, habilidades e competências não necessariamente associados às limitações humanas, sejam elas físicas, psicossociais, sensoriais, intelectuais, mesmo múltiplas ou de qualquer outra natureza ou grau de severidade, as quais comumente não são superadas em razão de barreiras que a sociedade precisa trabalhar para eliminá-las e saber como fazê-lo com máximo grau de eficiência e operacionalidade. Para isso, carece de massa crítica e aparelhamento funcional e atitudinal indispensáveis em todos os setores públicos e privados da sociedade. Essa pauta compõe o espectro de um status pós-moderno e contemporâneo que marca as relações sociais doravante no Estado de Direito democrático, que não prescinde da participação de todos na construção da felicidade geral e que abandona a tutela e a opressão como mecanismos de conservação de privilégios que não se podem validamente tolerar.
Desse modo, contar com um magistrado que conheça pela razão da própria experiência da discriminação sofrida ao longo da vida e dos conhecimentos associados que hauriu e os pratica e também os leciona na atividade judicial e acadêmica, ao par de suas competências e habilidades clássicas, reveladas em sua biografia curricular e calcadas numa experiência considerável, sobretudo na própria magistratura e sem nódoas, além de produtiva, engajada e racional, especialmente eficiente e notabilizada no próprio meio social dessa atuação e na atividade acadêmica, pedagógica, de pesquisa, na produção científica aplicada bem assim noutros campos da atividade humana, tudo devidamente comprovado, faz toda a diferença para se dispor de Ministro à Suprema Corte de fato dotado de real sensibilidade para compreender o alcance, o significado e as perspectivas normativas que hão de resultar de uma adequada incidência da Convenção de Nova Iorque entre nós e de todas as disposições por ela influenciadas.
Tem-se observado, outrossim, que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, embora se trate de uma Constituição dentro da Constituição Federal, é pouquissimamente conhecida entre os denominados operadores jurídicos e, se conhecida, malferida, ante a crônica falta de sensibilidade ao desate das questões que envolvem os direitos desse grupamento social que se eleva, conforme esclarecido acima, ao patamar de ¼ da população nacional, algo em torno de 47 milhões de brasileiros. Some-se a eles o enorme contingente de seus parentes, cônjuges, simpatizantes e militantes do campo dos direitos humanos que se terá uma noção dessa massa de interessados em soluções juridicamente adequadas, e em última instância, para esse segmento nada desprezível do povo. Na Suprema Corte, um magistrado com essa envergadura faria um contraponto formidável à densificação de todo esse universo normativo, sem prejuízo das demais rotinas que o estariam a aguardar no desate de suas funções de competência jurisdicional próprias. Parecem fartas as vantagens sociais, políticas, filosóficas e institucionais pelas quais um ministro pessoa com deficiência viesse a ser alçado aos quadros da Suprema Corte do Brasil.
Realmente, vencidas as barreiras de gênero e étnicas, cumpre à Nação brasileira, agora, vencer, também e principalmente, a barreira de atitude que envolve o pressuposto de que todo aquele que tiver algum tipo de limitação física, psicossocial, intelectual, sensorial ou múltipla deve ser tratado como "peso social" e não se admite que exercite qualquer protagonismo digno de nota e de transformação da própria sociedade. Ao par do descalabro que essa cultura silenciosa de exclusão suscita, convém esclarecer que os talentos adormecidos de tão farta parcela da população brasileira precisam despertar, também em face da especial simbologia que será o advento de um ministro pessoa com deficiência ao Supremo Tribunal Federal que, naturalmente, reúna todos os predicados constitucionais para assumir tão elevado posto da República.
Seria como que um primeiro passo concreto à inserção proativa desse contingente social nos negócios de Estado para estimular novas conquistas até à completa igualdade social. Ora, em toda a história da Suprema Corte brasileira, jamais foi incorporado em seus quadros alguém com algum tipo de limitação tecnicamente definida como tal. Aliás, em nenhum momento da história do Poder Judiciário nacional, Tribunal algum até muito pouco tempo atrás incluiu a reserva de vagas para ingresso nas carreiras da Magistratura, a despeito do comando constitucional preconizado no art. 37, inc. VIII, da Carta Política, das disposições da Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989 e do art. 37, § 1º, do Decreto Federal 3.298, de 20 de dezembro de 1999, bem assim do art. 5º, § 2º, da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990.
Enfim, do mesmo modo que foi a luta pelo advento da redentora Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, um movimento nacional se eleva, vertiginoso, crescentemente, e que nada tem de ingênuo, muito menos de maldoso, no intuito de desfraldar mais uma bandeira, firmada no protagonismo de seus enredos funcionais e categóricos a suscitarem proatividade, visibilidade e efetivação dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil. A presença firme e resoluta de um Ministro com deficiência na Suprema Corte vai acalentar os sonhos e os desafios dessa parcela não desprezível da população, ante a certeza de que, doravante, as pessoas com deficiência estarão sendo, finalmente, tratadas de igual para igual, e não como se fossem desqualificadas para a vida social produtiva. O exemplo arrasta. Praticar sem contingenciamentos os parâmetros acervados na norma convencional é resgatar a própria cidadania adormecida ou maltratada dessas pessoas. É o que se espera do Brasil em relação aos seus filhos da invisibilidade. Guarnecer essa prática de uma visão compatível com o modelo normativo preconizado é fundamental, haja vista um lema que ressalta justamente dos fundamentos e valores que cristalizaram essa norma universal de direitos fundamentais: NADA SOBRE NÓS, SEM A NOSSA PARTICIPAÇÃO!
Pode-se, ainda, facilmente descrever o efeito simbólico de uma tal indicação ao Supremo Tribunal Federal, espaço no qual todo debate jurídico se aterma e em que toda solução legal encontra o seu epílogo no âmbito interno da Federação. Uma tal indicação, além do mais, anunciaria ao país e ao mundo que as pessoas com deficiência somos de fato capazes para realizar o desafio da liberdade e de uma vida realmente autodeterminada, o mesmo que sucede às demais pessoas sem traços de limitação permanente de qualquer natureza ou intensidade. Redescobrindo-se a si mesmas, ainda que no aspecto por enquanto simbólico e dando mostras de que somos capazes, o bloqueio cultural que deriva das diversas formas de atitudes preconcebidas tende a reciclar-se na direção de sua eliminação. Um país grandioso não pode conviver com o preconceito por muito tempo, pois esse quadro é autofágico.
Além de tudo, a construção jurídica adequada sobre os novos paradigmas que já estão constitucionalizados no Brasil contribuirá para a emancipação social de muita gente que aspira, com ansiedade tardinheira, por ser reconhecida como protagonista do seu tempo, e não como mero contingente humano, subjugado e pesaroso.
Querendo viver sem tutelas externas e internas, quer sejam corporativas, sociais, afetivas ou institucionais - e disso têm todo o direito - as pessoas com deficiência no Brasil pedem passagem, enquanto cidadãs, em direção ao futuro. Para isso, reclamam espaço, respeito e liberdade real para que possam, juntamente com todas as demais pessoas, realizar-se plenamente em seus direitos e em sua cidadania. Sobretudo, pretende-se vencer, talvez, a mais perversa de todas as barreiras: o preconceito!
É chegada a hora de quebrá-lo de um modo particularmente emblemático e eloquente
Devemos todos estar prontos e preferencialmente unidos para enfrentar mais esse desafio: a indicação, afinal, de um Ministro com deficiência para o Supremo Tribunal Federal, dado que a solução não encontra conjuntura que seja desfavorável e que, pela postergação de décadas, realmente, não tem mais e porque aguardar. Trata-se de uma questão de Justiça e de vida intergrupal e plenamente participativa. Outra inferência pressupõe a conservação de privilégios que já vêm compondo a pauta da crítica social hodierna, sempre baseada em recorrente desconhecimento de causa ou na obtusidade dos agentes públicos e daqueles que atuam na iniciativa privada.
Outrossim, ganhamos todos os de boa vontade com a ascensão de um representante das pessoas com deficiência conquanto jamais presentes na Suprema Corte, um órgão essencial para os seus destinos e aspirações legais para todos.
Importa, ao fim, realçar que não é a deficiência que qualifica o agente público ou privado, mas, detendo qualidades e sendo pessoa com deficiência, pode reunir melhores condições de trabalho e de aptidão funcional para o exercício de múltiplas funções, exatamente por ser uma pessoa mais sensível aos problemas humanos. A experiência forja. A dor humana faz crescer. Isso tudo parece muito claro até mesmo ao senso comum. De fato, só é preciso vencer o preconceito ainda arraigado na sociedade brasileira.
De tudo o que aqui se expõe, constata-se não só a pertinência contemporânea do tema, mas a sua importância institucional na construção permanente de uma sociedade mais justa, qualificada e condizente com o seu potencial de liberdade, emancipação e vida plena para todos, efetivamente participada e afirmativa.
Do mesmo modo, considera-se que toda análise qualitativa de meios e resultados, quanto à empregabilidade e ocupação funcional das pessoas com deficiência física, intelectual, sensorial ou múltipla depende, sobretudo, do exercício pleno da inclusão, enquanto pressuposto social de resgate das desigualdades e das injustiças cronificadas no socius. Essa atitude de incluir - ultima ratio - consiste em assegurar o acesso, a permanência e os recursos assistivos às pessoas com deficiência no respectivo espaço de trabalho. A simples sugestão de seu aproveitamento em igualdade de condições com as demais pessoas já sinaliza nessa direção edificante.
Cumpre, pois, sem obsessão identitária, eliminar as deficiências, elidir as limitações, prevenindo-as, compensando-as ou reabilitando-as, em geral e, muito especialmente, no âmbito do trabalho e das funções públicas mais elevadas, nunca, porém, com diminuição das pessoas com deficiência, as quais devem ter sua dignidade humana inteiramente respeitada, chamadas a participar em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os espaços no socius.
A inclusão emancipatória, vale a ênfase retórica, das pessoas com deficiência, inclusive quanto à questão da empregabilidade nos mais amplos segmentos, é dever da sociedade, das empresas e do Estado e direito delas, enquanto persistirem as condições de desigualdade que marcam o perfil de países periféricos como o Brasil.
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