A jovem democracia brasileira está constipada, febril. Encontra-se sob ataque viral recorrente, vítima de rarefeitas cepas judiciais e policiais reincidentes atuando para atrofiar os organismos e diálogos institucionais de maneira sub-reptícia, sob comando de agentes infecciosos externos, alguns camuflados. A democracia e o estado democrático de direito têm seus anticorpos e vacinas para neutralizar o assédio do corpo estranho, basta focar na sequência genética e expurgar o transmissor da moléstia a fim de evitar a intubação.
A epidemia direitista pelo mundo recorre à algumas incubações coincidentes para asfixiar a democracia representativa. Tentam deslegitimar as instituições, encorajar enfrentamentos físicos, polarizar com as esquerdas (comunistas, socialistas, petistas e outros istas), subtrair direitos individuais e coletivos, terceirizar fracassos, atacar sistematicamente a imprensa, sabotar o conhecimento e, mentir como método permanente. No Brasil a jabuticaba virótica é impulsionar e armar a milícia, eufemismo de crime organizado e banditismo.
Nos espirros fascistas estes experimentos interagem com outras drogas, como a manufatura de mitos insipientes, propaganda maciça extraída dos tubos de ensaio de Joseph Goebbels, o anti-intelectualismo, a desconexão com a realidade, ódio às liberdades, reiteração dos conceitos de hierarquia, vitimização, apelos patrióticos, desarticulação do Estado até os enfermos implorarem pela prescrição da lei e da ordem. Eis o DNA do vírus procurando nos contaminar diariamente. A politização da Justiça, instrumentalização e sequestro dos conceitos do Estado de Direito é um dos expedientes mais temerários para a constrição democrática.
No Brasil a ambiência da carga viral foi fértil. A tentativa de empestear o modelo democrático encontrou por aqui o laboratório ideal e o hospedeiro padrão. Sérgio Moro, autor do manifesto exaltando os métodos da operação “mãos limpas”, foi o primeiro vetor a terceirizar a toga que achatou a curva democrática. O que ele fez no laboratório jurídico de Curitiba é conhecido. Debilitou as rotinas sagradas da democracia, cultivando parasitas a partir de exceções. Vazou fora da sua competência áudios captados além do horário judicial, grampeou advogados e suspendeu o sigilo da estéril delação de Antônio Palocci às vésperas da eleição. Premiado com um ministério foi expelido após reações adversas na convivência. No embate entre o bolsonarismo jurídico e o político, Moro foi para emergência junto com a lava jato.
A experiência patógena contou ainda com a colaboração sistêmica do Ministério Público, através da operação lava jato que ainda conserva seus admiradores no Supremo Tribunal Federal, apesar dos conhecidos excessos. Ameaçado de fechamento por aliados de Bolsonaro, o STF tem prescrito a terapia de antibióticos democráticos para tratar as febres totalitárias. O capitão foi forçado a abandonar as pregações autoritárias e buscou a imunidade contra o impeachment na enfermaria do centrão. Mas o retrovírus já estava inoculado, circulando no sistema e provocando tosses malsãs, notadamente em escalões distintos do Judiciário e de órgãos do Executivo. Um dos hospedeiros da lava jato acaba de ser punido por militância política. Marcelo Bretas levou uma censura do TRF-2.
Wilson Witzel é outro togado do receituário de excepcionalidades que se voluntariou nas arriscadas aglomerações políticas. Foi vítima do próprio remédio, transformado em veneno. Os ministros do Superior Tribunal de Justiça mantiveram a decisão de isolar governador do Rio de Janeiro do cargo. Por 14 votos a 1, os ministros entenderam que o diagnóstico feito até o momento demonstra que há indícios suficientes para recomendar a longa quarentena de Witzel, aparentemente sem volta. Com grave falta de ar, o mandato entrou na contagem regressiva com a evolução do processo impeachment.
O governador foi afastado do mandato por 180 dias em uma decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ. O afastamento foi determinado no âmbito da Operação Tris in Idem, um desdobramento da Operação Placebo, que ausculta sintomas de corrupção em contratos públicos do governo do Rio de Janeiro. A endoscopia detectou uma organização criminosa alojada nas entranhas do poder a partir da eleição de Witzel. Ela se divide em três cepas que, sob a liderança de empresários, pagavam vantagens indevidas a agentes públicos. Os grupos teriam loteado as principais secretarias para beneficiar determinadas empresas.
Outra magistrada, precocemente diagnosticada por malefícios éticos, conflitantes com a retórica eleitoral, foi Selma Arruda, conhecida por “Moro de saias”. Por 6 votos a 1, o Plenário do Tribunal Superior Eleitoral decidiu a favor da cassação do mandato de Selma Arruda, no final de 2019. Também foram cassados os primeiro e segundo suplentes da chapa, Gilberto Eglair Possamai e Clerie Fabiana Mendes. Os ministros consideraram que a parlamentar praticou caixa dois e abuso de poder econômico na campanha de 2018. Prevaleceu entendimento do relator, ministro Og Fernandes, pela manutenção da decisão do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso (TRE-MT).
Ao examinar a radiografia da campanha, constatou-se que a senadora eleita omitiu, à Justiça Eleitoral, um contrato mútuo no valor de R$ 1,5 milhão, “valor firmado com seu suplente Gilberto Possamai, justamente o valor total de dois cheques, de R$ 1 milhão e de R$ 500 mil, emitidos pelo primeiro suplente da chapa para o pagamento de despesas da eventual candidata já em período pré-eleitoral, entre outras irregularidades”. As experiências de togados na onda política recente empalideceu a magistratura. Os juízes têm proteções constitucionais dadas pela democracia, como vitaliciedade, inamovibilidade e altos salários. Não podem ser agentes infecciosos contra direitos ou atrasos civilizatórios, vistos por exemplo, nas sentenças ressuscitando a censura no Rio de Janeiro. Juízes podem ser de direita, não ignorar o direto.
Alguns outros magistrados que trocaram a toga pela política têm obedecido as bulas democráticas e se mantêm assintomáticos no surto epidemiológico que vinculou a toga a movimentos de direita. O governador Flavio Dino é ex-juiz federal e tem obtido bons diagnósticos à frente do governo do Maranhão. A ex-juíza Denise Frossard, conhecida pelo enfrentamento ao crime organizado no Rio, não teve mandatos longevos, mas saiu sem hematomas após o período como deputada federal. Já o ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa, competitivo na eleição presidencial de 2018, preferiu o leito confortável da aposentadoria às altas taxas de mortalidade das UTI’s políticas.
As comorbidades são dos indivíduos e não do modelo ou das instituições. A Constituição, uma das melhores da nossa história, é saudavelmente cidadã. Ela permite atuar contra as transmissões locais antidemocráticas. Recentemente o STF debelou o dossiê antifascista no Ministério da Justiça e promoveu uma assepsia preventiva no decreto que autorizava a Abin radiografar dados sigilosos dos cidadãos. Antes baniu perfis insalubres nas redes sociais e determinou buscas, apreensões e quebras de sigilos. O STF também vetou qualquer restrição na lei de acesso à informação. As vacinas contra enfermidades absolutistas imunizam a democracia e devem ser aplicadas, em campanhas maciças, para evitar uma septicemia irreversível.
Por Weiller Diniz
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