No filme de Tancredo, uma aula para hoje
ator Othon Bastos como Tancredo Neves nas filmagens de "O Paciente" - Ricardo Borges/Folhapress
Em 1985 e 2018, fez-se o que a lei mandava, mas pode-se intuir a próxima crise
Vem aí uma aula de política. É o filme "O Paciente", de Sérgio Rezende. Conta a agonia e morte de Tancredo Neves, em 1985. Na véspera de sua posse, o presidente eleito foi internado às pressas para o que seria uma cirurgia banal, talvez de apendicite. Os médicos e os hierarcas de Brasília informaram que ele sairia do hospital em poucos dias, e os principais jornais do país noticiaram sua alta iminente em dez ocasiões. Tancredo entrou no Palácio do Planalto 36 dias depois, para o velório.
O filme conta uma história dramática de erros médicos, dissimulações e mentiras que hoje soam como uma narrativa concatenada. Para quem tem menos de 40 anos, o drama faz sentido e seu desfecho é minuciosamente exposto, mas, à época, tudo o que hoje se vê no filme era segredo.
"O Paciente" é uma aula. Mostra como se mentiu e como se manipulou a opinião pública. Horas depois da primeira cirurgia, oficialmente bem-sucedida, Tancredo teve uma parada respiratória e quase morreu, mas isso foi escondido. Daí em diante, tudo o que podia dar errado, errado deu.
Othon Bastos, o Corisco de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", é um Tancredo impecável, apesar dos muitos quilos a mais. Suas expressões ressuscitam o memorável mineiro. Paulo Betti como o "professor doutor" Henrique Pinotti é um primor na exposição de um intrujão megalomaníaco e exibicionista. O egocentrismo das equipes médicas não tem exageros e é coisa de dar medo a quem entra hoje num hospital.
Quem matou Tancredo? Todos os personagens do filme, inclusive ele, que escondia seus padecimentos. Suas dores abdominais haviam começado em janeiro e ele se iludia tomando antibióticos. Deixou que os médicos falassem em apendicite, mas sabia que extraíra o apêndice havia 50 anos. (Essa é a única imprecisão do filme, pois informa que o apêndice estava lá.)
A morte de Tancredo mutilou a base da redemocratização do país, pois colocou na Presidência o vice José Sarney, assombrado pela contestação de sua legitimidade. As pessoas foram dormir esperando que na manhã seguinte veriam Tancredo com a faixa e acordaram com Sarney vestindo-a. A posse do ex-presidente do partido da ditadura era constitucional, mas não fazia sentido. Tudo bem, porque Tancredo ficaria bom.
Passaram-se 33 anos e hoje não há médicos na crise, mas algumas coisas também não fazem sentido. Assim como fingia-se que Tancredo reassumiria, finge-se que Lula preso, com 39% das preferências na pesquisa do Datafolha, é apenas um detalhe. Lula foi condenado em duas instâncias e garante que nunca ouviu falar das roubalheiras petistas. Ainda assim, em vez de cair nas pesquisas, sobe.
Em 1985, fez-se o que a lei mandava. Em 2018, faz-se o que a lei manda, mas pode-se intuir o tamanho da próxima crise. Felizmente, agora pode-se escolher o próximo presidente.
Elio Gaspari – Folha de S.Paulo
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